Prefeituras e estados deixaram de prestar contas sobre o uso de 94% dos recursos recebidos nos últimos três anos por meio das “emendas Pix”, uma modalidade na qual o dinheiro público é direcionado pelos parlamentares aos seus redutos eleitorais sem necessidade de passar pelos ministérios. Um levantamento realizado pelo jornal O GLOBO revela que, dos R$ 6 bilhões transferidos entre 2020 e 2022, apenas R$ 400 milhões foram devidamente justificados perante o governo federal, enquanto o destino dos outros R$ 5,4 bilhões permanece obscuro. Essa falta de transparência contraria uma orientação do Tribunal de Contas da União (TCU), que, embora tenha transferido aos tribunais locais a responsabilidade de fiscalizar esses recursos, recomenda que prefeitos e governadores enviem relatórios atualizados sobre o uso desses recursos provenientes da União. O TCU, em março deste ano, determinou que todos os beneficiários dessas emendas parlamentares prestassem contas por meio do sistema Transfere Gov, do Ministério da Gestão. Caso não cumpram essa obrigação, a Corte de Contas poderá iniciar uma “tomada de contas especial”, uma auditoria extraordinária na contabilidade dessas prefeituras ou governos estaduais. Entretanto, seis meses após essa decisão, o tribunal ainda não definiu critérios, incluindo prazos e detalhes específicos a serem fornecidos.
O governo da Bahia, liderado até o ano passado pelo atual ministro da Casa Civil, Rui Costa, foi o principal beneficiário das emendas Pix nesse período, recebendo um total de R$ 91 milhões, mas apenas R$ 22 milhões foram devidamente justificados. Os relatórios enviados pelo governo baiano indicam que esses recursos foram utilizados, por exemplo, para a aquisição de duas estações retransmissoras para a TV digital do estado, no valor de R$ 7 milhões. Um estudo da Transparência Brasil divulgado em julho deste ano revelou que a maior parte das emendas Pix se concentra em cidades de pequeno porte, com até 10 mil habitantes, que receberam 25% do total alocado por parlamentares nesses repasses especiais. A entidade também observou que a transferência da responsabilidade de fiscalização para os estados amplia o problema nessas localidades, onde os processos de prestação de contas costumam ter menor rigor.
Isso é evidente no caso da cidade de São Luiz, em Roraima, que, apesar de ter uma população de apenas 7.3 mil habitantes, recebeu R$ 41 milhões em emendas Pix entre 2020 e 2022, sem justificar como esses recursos foram utilizados. Recentemente, o prefeito da cidade, James Batista, teve seu mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral, sob acusação de distribuir cestas básicas, dinheiro e viagens durante sua campanha à reeleição. Ainda cabe recurso contra essa decisão. São Luiz ganhou destaque no ano passado por contratar o cantor Gusttavo Lima por R$ 800 mil, o que levou o Ministério Público a abrir uma investigação sobre o evento, que foi cancelado por ordem judicial. Em entrevista ao GLOBO, o prefeito Batista afirmou que desconhecia a falta de envio dos relatórios de gestão ao sistema do governo federal, explicando que o dinheiro foi investido em moradia, pavimentação e saneamento básico. Quanto à destinação dos recursos pelo governo baiano, tanto Rui Costa quanto a atual administração não responderam aos questionamentos. Juliana Sakai, diretora-executiva da Transparência Brasil, destacou que a dinâmica das emendas Pix se assemelha à falta de controle observada no caso do orçamento secreto, onde os recursos eram repassados a municípios sem identificar o autor da emenda.
As emendas Pix, oficialmente chamadas de “transferências especiais”, foram criadas pelo Congresso em 2020 para simplificar o processo de direcionamento de recursos federais por parte dos parlamentares aos seus apoiadores. Na prática, funcionam como transferências bancárias diretas, sem a necessidade de convênios ou planos de trabalho detalhados como ocorre geralmente para o repasse de verbas públicas a prefeituras. No entanto, mesmo essa regra tem sido desrespeitada, conforme apontou um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) de dezembro de 2022. A CGU encontrou casos nos quais as emendas Pix foram usadas para pagar salários de servidores, o que é proibido nessa modalidade. Embora as emendas Pix tenham simplificado a distribuição de recursos, a CGU enfatizou que a Constituição exige a prestação de contas por parte de qualquer entidade que utilize recursos públicos. Portanto, a falta de transparência e prestação de contas adequada é uma questão que precisa ser abordada, incluindo a necessidade de regras claras e divulgação de informações em formato acessível para permitir o devido controle.